quinta-feira, 7 de junho de 2012


A Pele que Habito
Por Márcia Hita


Qual é a Pele que Habito?


Título Original:  La Piel que Habito
Gênero: Drama
Direção e Roteiro: Pedro Almodóvar
Fotografia: José Luiz Alcaine

Elenco:  
Antônio Banderas -Roberto Ledgard
Elena Anaya -Vera Cruz
Marisa Paredes - Marília
Jan Cornet -Vicente
Bianca Suárez -Norma Ledgard



De que Pele estamos falando?

 A Pele é o maior órgão do Corpo Humano, a interface entre o meio interno e externo, sendo responsável pelas sensações do tato e pelos prazeres do toque. É o catalisador de tudo que é transmitido, sendo um órgão de memória e informação. Expõe as marcas do tempo, revela nossas experiências e nosso estado emocional, reflete nossas raízes e as diferenças biológicas e geográficas, revelando muito do que somos e o que já passamos.

Simbolicamente, a “Pele que Habito”, representa a Identidade, que é o conjunto de caracteres  exclusivas de uma determinada pessoa: nossa personalidade. A sua formação é dinâmica e contínua desde a gestação até a morte, pois estamos sempre em Gênese. Múltiplos fatores estão envolvidos em seu desenvolvimento desde nossa história biológica, familiar, escolar, social e cultural, até nossas crenças. Está atrelada ao desenvolvimento do ser de uma forma integral, a estruturação do Ego e ao Processo de Individuação.

Nas primeiras etapas da vida estamos muito identificados com o Ego e com a Persona que são as máscaras (ou papéis) que aprendemos a representar na vida. Já na segunda metade existe uma reorientação dos desejos em direção aos níveis mais profundos do ser e começamos a nos questionar sobre e sentido real da experiência humana.  À medida que isso acontece o indivíduo vai se tornando único e tomando posse de sua verdadeira essência: seu Self.

A Pele que Habito é indiscutivelmente um “Almodóvar” e apesar de ser um filme diferente na cinematografia do diretor, podemos reconhecer sua marca única em toda a trama.

Estão aí suas obsessões com sexualidade, identidade sexual, diferenças entre os sexos, aceitação do corpo e traição. Temos também presentes os transtornos de personalidade, abuso de poder, solidão e morte.
Aos close-ups e as cores (que estão mais sóbrias), o cineasta acrescentou com maestria, um misto de ficção científica e suspense, mesclando todos os gêneros realizados anteriormente.
O filme foi inspirado no romance “Tarântula” (Mygale) de Thierry Jonquet, publicado em 1984 sobre um homem que prende sua esposa em um quarto mantendo-a prisioneira, como a aranha faz com sua presa e no filme “Os olhos sem rosto” de Georges Franju de 1959 que fala do desespero de um médico que tenta recuperar com transplantes a face destroçada da filha. 
A Pele que Habito é um filme que retrata a Sombra humana que é o lado reprimido e negado de nossa personalidade e revela a profunda dissociação que estamos vivendo: a loucura na família, na sociedade e na ciência.
 O cenário é Toledo, cidade histórica próxima a Madrid, paisagem belíssima e bucólica, numa casa com nome romântico, “El Cigarral”, que esconde uma realidade sinistra. As cigarras são insetos que passam por uma metamorfose durante a vida, deixando seu exoesqueleto e “mudando de pele”.
Sem seguir uma ordem cronológica, o filme começa em 2012 e o cineasta escolhe nos contar o passado, recuando 12 anos no tempo, dentro do universo onírico, através de dois sonhos, dos protagonistas, que ocorrem simultaneamente. E é assim que aos poucos vamos juntando as peças da trama e entendendo melhor o enredo e a história dos personagens. Com os sonhos é possível “brincar” com os símbolos, pois o cinema é onírico por natureza!

Inicia apresentando Vicente-Vera, em seu corpo de mulher, preso num quarto, vestido em uma malha que lhe molda o corpo, meditando, fazendo asanas do Yoga e trabalhos artísticos. Depois conhecemos o dr. Robert Ledgart eminente cirurgião plástico que palestra a respeito da importância da reconstrução do rosto nos acidentados.
Famoso por suas pesquisas para desenvolver uma pele artificial de alta resistência, seu trabalho não é reconhecido nem aceito no meio científico por usar métodos transgênicos, misturando material genético humano ao de suínos.
 Fica claro que Robert mantém Vicente-Vera em cárcere privado, utilizando-o como cobaia para seus experimentos clandestinos. Seu único contato com o mundo externo é o médico, a TV e a governanta da casa Marília, com quem se comunica por interfone. Esta o vigia por um sistema de circuito de imagens, lhe mandando alimentos, remédios e livros por um elevador mecânico. 



Dr. Robert é um voyeur e observa sua presa, seu objeto de desejo, Vicente-Vera do seu quarto através de um telão, num comportamento sádico e perverso. O prisioneiro inconformado com sua condição tenta fugir e libertar-se sem sucesso, através do suicídio.

 O médico lhe fornece drogas e observa-se entre os dois um clima de tensão, obsessão e sedução. Vicente-Vera questiona sobre seu destino, seu futuro: “Você está satisfeito com sua obra? Gosta do que vê? Se estou terminada o que vai fazer comigo? Não acha que o mais simples seria viver, conviver como todo mundo? Sou sua...



No dia anterior a noite dos sonhos, Zeca, filho de Marília, governanta da casa, aparece no “El Cigarral” depois de mais de 10anos, fantasiado de tigre, pois era Carnaval. Utiliza-se da esperteza, da chantagem emocional e da sedução para entrar na casa e fugindo da polícia, quer que Robert lhe opere o rosto para não ser reconhecido. Ele é um homem de porte robusto, dominado pelos instintos básicos (sobreviver, lutar e fugir) e dominado pela Sombra.

Na TV uma mulher diz sincronicamente: “A todos por trás das máscaras”, mostrando o assalto e o assassinato praticado por Zeca. A fantasia que ele escolhe já diz muito de suas características e de sua Persona.

Vê Vincente-Vera nos monitores da cozinha da casa e o confunde com Gal, ex-mulher do Dr. Ledgard. Procura-o pela casa, depois de prender e amordaçar a mãe que assiste tudo pelos monitores da cozinha. O tigre-Zeca escolhe sua presa, a domina e a devora. Na esperança de fugir, Vicente-Vera entra no jogo do agressor pedindo que o leve com ele e é violentamente violentado. O médico chega nesse exato momento, matando-o pelas costas, tendo apontado a arma primeiro para o rapaz.

Enquanto Robert sai para enterrar o corpo, Marília conta a Vicente-Vera os segredos da família no jardim diante do fogo, que arde. Ela confessa que Zeca e Robert são seus filhos, mas que ambos desconhecem esse fato. O Tigre é filho de um ex-empregado da mansão e não foi criado por ela, crescendo longe no Brasil e o médico é filho do seu patrão Sr. Letgard, que o assumiu e criou com sua esposa pois o casal não podia ter filhos.

Observamos uma mãe frustrada, omissa, com profundos sentimentos de culpa, que faz clara preferência entre os filhos, nutrindo um amor neurótico por Robert em detrimento ao desprezo que tem por Zeca. Por ele fora capaz de viver uma vida inteira no anonimato, como governanta, e seu uniforme já lhe confere a máscara que adotou para se esconder e poder cuidar e servir o filho que escolhera amar.

Apesar de terem desenvolvido Personas completamente opostas: um com pouco nível educacional, dominado pelos instintos, o outro instruído e intelectual, os dois irmãos apresentam distorções comportamentais e de caráter. 

Marília fala sobre a relação dos dois filhos com Gal, a esposa de Robert que a 12 anos atrás apaixonada foge com Zeca, abandonando o marido, sofrendo um acidente de carro que a deixa completamente queimada. Conta como ele ficou ao seu lado, dia após dia, pesquisando sem parar e cuidando da esposa, relatando as circunstâncias trágicas de sua morte. Um dia depois de muitos meses, Gal começou a melhorar e ouviu a filha Norma que brincava no jardim cantar “Necessito amar” em português, música que ela tinha ensinado a filha. Neste instante Gal sentiu uma profunda emoção, o que não acontecia há muito tempo e quando abriu a janela para ver sua filha, viu sua imagem desfigurada refletida no vidro. Seu grito de dor e desespero ecoou em toda a casa e ela atirou- se pela janela, suicidando-se na frente de Norma que anos depois também suicida-se. 

Ao retornar para casa, Robert e Vicente-Vera vão dormir juntos, pela primeira vez, ele está apaixonadíssimo e o deseja, este o seduz usando suas novas armas femininas e pede para não ter relações sexuais com ele, pois está machucado e muito cansado com o estupro de Zeca.

 Os acontecimentos trágicos do dia: o estupro de Vera-Vicente por Zeca e o seu assassinato reavivam o passado traumático na mente dos dois que sonham quando adormecem. O sonho do rapaz é maior e muito simbólico sendo também influenciado pela conversa que teve com Marília.


Dr. Robert Letgard esconde atrás da máscara de intelectual fino e médico bem sucedido sua personalidade psicopática. Com graves desvios de caráter, é frio, calculista e sem capacidade de ter emoções genuínas. Manipulador é insensível aos sentimentos do outro que é visto como coisa, não sente remorso ou culpa pelos atos cruéis que pratica. 
Inflado, coloca o Ego no lugar do Self, pensando e agindo com se fosse Deus, (Complexo de Poder: Zeus). Vingativo, com tendência a realização de castigos e punições, impõe sua justiça pessoal, olho por olho e dente por dente, imaginando ter a vida e o destino das pessoas em suas mãos, e o controle de tudo. Na verdade esconde um Ego frágil, desestruturado, sendo provável que a não aceitação de sua origem, a negação da verdadeira mãe, tenha gerado um trauma infantil, e ter sido um dos fatores na gênese de sua patologia, (Complexo Materno Negativo).
Sua mente era brilhante e poderia utilizar sua inteligência e sua capacidade em pesquisas para a evolução da ciência e da medicina, ao invés disso age de forma antiética, abusando de poder usando cobaias humanas e pesquisando com material geneticamente modificado. 
Dr. Robert sonhava com uma família perfeita: Era casado, tinha uma filha, e sua esposa era o grande amor da sua vida, acreditando ser correspondido. Seu amor era do tipo obsessivo e idealizado e sua esposa era materialização do seu animus (figura feminina interior do homem). A aparente felicidade, no entanto é abruptamente rompida quando inesperadamente seu sonho é destruído e descobre que sua mulher fugira com outro homem, um golpe enorme para seu orgulho, vaidade, sua masculinidade, seu Ego.
Na fuga sua esposa sofre um acidente de carro, atraindo a fatalidade e ficando com seu corpo inteiramente queimado e o rosto desfigurado.  A traição, a perda do objeto idolatrado e a frustração o traumatizam... Nega-se a enfrentar o fato invertendo o lugar de traído para salvador, e investido neste arquétipo, (Mito de Prometeu) muito comum em alguns médicos, procura desenfreadamente desenvolver uma pele artificial para recompor o rosto e o corpo de sua amada, prolongando sua vida evitando sua morte (sombra da medicina), dedicando-se totalmente a ela. Mantê-la viva, desfigurada, também é uma forma de se vingar, mantendo-a prisioneira de seu corpo. Desta forma beneficia seu Ego, colocando-se em lugar de superioridade.
 Amor e ódio se misturam numa relação sado-masoquista. Em sua obstinação e loucura é capaz de tudo para realizar seus propósitos frustrado-se novamente por não conseguir salvá-la, pois ela se suicida de forma trágica como vimos, jogando-se da janela diante da filha que assiste tudo. 
Depois da morte de sua esposa, Robert, projeta todo o amor que sentia por ela na menina que passa a apresentar a partir daí sintomas de severa dissociação com transtornos histéricos e fobia social. 
O sonho de Robert é o retrato da sua mente e descreve o seu ambiente psíquico. Preso ao passado não consegue se libertar dos seus traumas, revivendo a situação do suposto estupro da filha ocorrido no casamento de Casilda, uma amiga, a seis anos atrás.
Uma atmosfera dionisíaca, promíscua, de liberdade sexual, de casais mantendo relações sexuais isolados ou em grupo mostra o sonhador observando entre os arbustos, confirmando um dos traços de sua personalidade perversa, o voyeurismo e revelando também aspectos de sua sexualidade, dos seus desejos e fantasias reprimidos.
 A preocupação exagerada com a filha, de quem vigia os passos, expõe sua necessidade de controle e superproteção. Provavelmente a trata como criança e nega que já é uma mulher com desejos próprios sufocando-a. Duplo equívoco: a menina entra em crise histérica ao ser tocada por Vicente, o pai quando a encontra interpreta mal a cena e pensa que a filha foi estuprada, esta quando acorda tem nova crise histérica e pensa ter sido estuprada pelo pai, indicando sua imaturidade emocional, infantilidade e um Édipo (Complexo Paterno Negativo) mal resolvido. Neste momento, Robert desperta angustiado, por ter reexperimentado a emoção da cena, olha para Vicente-Vera, que está deitado ao seu lado, o abraça e volta a dormir.

 Norma não consegue libertar-se de seu destino e segue o modelo da mãe suicidando-se como mecanismo de fuga. Sua morte reativa o trauma original de Robert, que sendo incapaz de lidar com suas dores e perdas, endereça seu desejo de vingança para o suposto estuprador de sua filha, Vicente, projetando nele toda a culpa de seu sofrimento.
Como a filha ocupava o lugar da mãe nada como vingar-se fazendo com que ele devolva o seu objeto de desejo: sua esposa. Daí a idéia de “transformá-lo” na própria Gal, uma mulher.... Robert seqüestra Vicente e o mantém prisioneiro. Depois muda seu sexo e utiliza nele a Pele artificial que desenvolvera a fim de construir para ele um corpo feminino. Faz isso de forma arbitrária, meticulosa e planejada como bom perfeccionista que é. Podemos observar aí a busca pela mulher idealizada e a tentativa de reconstruir sua imagem: um Dr. Frankstein moderno e novamente o ódio e o amor juntos.


 Constela-se aí o Mito de Pigmalião, quando o artista se apaixona por sua própria obra que na verdade é um reflexo de si próprio e de sua estrutura narcísica (Mito de Narciso). Robert em sua insanidade apaixona-se por Vicente-Vera, mas apaixonado se deixa seduzir por ele e cego não consegue ver que caíra em sua própria teia, transformando-se em presa. Paixão e obsessão se misturam e sua morte é conseqüência de suas próprias condutas, pois ele mesmo a atraí para si. 
Vicente é um rapaz jovem, bonito, com uma sexualidade expressiva, heterossexual convicto mostra-se confiante com as mulheres e é correspondido em suas investidas. Usuário de drogas e freqüentador de baladas, provavelmente trabalhava com sua mãe em seu brechó, como estilista e programador visual. Não há referências masculinas em sua vida e parece viver somente com sua Mãe.
Seqüestrado e mantido prisioneiro por Robert durante seis anos, foi violentado e torturado no nível físico e psíquico tendo todos os seus direitos de cidadão e Ser humano suprimidos. Sem poder defender-se viu seu sexo ser mudado arbitrariamente e o seu corpo masculino ser substituído por um feminino.

No seu sonho Vicente-Vera revive tudo o que lhe aconteceu desde a festa, o encontro com Norma, o suposto estupro, seu seqüestro e toda a metamorfose que passou.

No início do sonho, ele está no brechó de sua mãe, que vende roupas femininas, costurando uma roupa para um manequim-espantalho que simbolicamente representa ele mesmo, um corpo de mulher sem vida, sem rosto, sem identidade, exposto em uma vitrine. Os inúmeros símbolos apontam para os sentimentos do sonhador em relação ao seu corpo, a não aceitação de sua nova condição, das alterações corporais profundas e mudança de sexo forçada. A identidade de um homem num corpo de mulher...

A cena sai do sonho e volta para Robert e Vicente-Vera deitados na cama e a câmera se desloca para o rosto dele, que continua a sonhar. Entramos novamente no sonho, e ele já se encontra na festa. A imagem é sobreposta e vemos o rosto de Vera e Vicente frente a frente.



 Recorda o dia do casamento, o encontro e o flerte com Norma, seguido da saída para o jardim. Ele está “chapado”, e ela diz que também está drogada com seus remédios. Começam a namorar e Norma sente a necessidade de se livrar de suas roupas, libertar-se de suas máscaras, que a sufoca. A menina divide-se entre o desejo e o medo, entra a criança e a mulher enquanto Vicente a despe a beija e a toca. 

Nesse momento, sincronicamente a cantora Concha Buika começa a cantar a música “Necessito amar”, revivendo a sua memória traumática com a lembrança da morte de sua mãe e precipitando uma crise histérica. (A voz da cantora confunde-se no final coma voz infantil de Norma contando em português). Vicente é mordido na mão por ela e aturdido lhe  dá um tapa ,  esta  desmaia, e ele foge do local depois de vesti-la com cuidado.

Ao sonhar que sua mãe vai à delegacia de polícia, Vicente-Vera expressa o desejo de ser lembrado por seus caros e deseja que sua mãe não se esqueça dele e não desista de procurá-lo.

Desespero, medo, solidão, ansiedade, o desconhecimento de seu destino, a possibilidade de ser morto, a falta de controle. Apesar disso ele sobrevive... Como?

Para se manter conectado com o tempo ele passa a escrever na parede do quarto, anotando as datas, dia após dia, escrevendo frases e desenhando. As frases simbolizam o esforço do personagem em manter-se vivo psiquicamente e não sucumbir às adversidades que lhe aconteceram. São comandos verbais afirmativos: “Respiro, sei que respiro”, 40 minutos fora daqui”, “O ópio me ajuda a esquecer”,” A arte é a garantia de saúde”. Desenhos de um corpo com a cabeça em forma de casa e um outro deitado com a cabeça de casa de cachorro, também mostram o conflito a Identidade e seu aprisionamento dentro de seu próprio corpo.

 A leitura foi um recurso de aprendizagem e informação, assim como a TV uma das suas poucas ligações com o mundo externo. Os três canais que assistia mostram-lhe recursos para a sobrevivência. O primeiro canal mostra um guepardo brincando com um filhote de cervo antes de matá-lo, a cena reproduz o que Vicente-Vera estava vivenciando, e a estimula a acionar seus instintos.

No segundo uma mulher dá aulas de Yôga e ensina que existe um lugar inviolável, um refúgio inacessível dentro de nós. A prática diária e disciplinar da posturas ou asanas, permite que ele diminua a ansiedade através da respiração, e o reconecta com o seu novo corpo que vai devagar tomando posse. A meditação refaz o contato com seus níveis mais profundos de Consciência, desenvolvendo tranqüilidade, paz, centramento e lucidez para enfrentar a situação.
  

Um terceiro canal mostra uma pessoa sendo coroada Rei, que representa o Self, e trás a mensagem que ele tem que buscar a inteireza.
   
Podemos observar o mesmo padrão dos manequins nas esculturas que ele começa a produzir inspirado no trabalho de Louise Bourgeois que conhece pela TV e através de livros. São esculturas de argila recobertas de retalhos de panos sem rosto. Vicente–Vera é um homem sensível, com uma figura feminina interna; a anima desenvolvida aprecia o belo, é um artista.  A arte foi um dos recursos que utilizou para evitar a loucura.

O rapaz em seu desespero tenta fugir e suicidar–se duas vezes durante o filme.

 As roupas, e os manequins nos remetem a Persona e as máscaras. Ele rasga as roupas femininas que o Dr. deixa para ele sobre a cama, e também as de seu armário para fazer suas obras de arte. A própria malha usada por Vicente-Vera é uma segunda pele que deixa seu corpo moldado como se estivesse nu. Importante também o vestido que ele veste no final do filme e quando sai para comprar roupas para sua nova Identidade.

 Vicente-Vera passa de possível algoz para vítima da violência, de estuprador para estuprado de homem para mulher. Em seu desejo de liberdade, mobiliza seus mecanismos de defesa na luta pela sobrevivência e planeja sua vingança invertendo novamente os lados e identificando-se com o algoz.

Ao acordar Vicente-Vera prepara o café para levar para Robert, que ainda dorme, circulando pela casa livremente enquanto Marília parece desconfiada. Ele vai até seu quarto para pegar a bandeja e observa tudo o que escreveu na parede, durante aqueles anos, vê o lençol repleto de sangue, onde Zeca a violentou e foi morto por Robert e parece pensar sobre o sonho que teve; refletindo sobre tudo que lhe aconteceu.

 Robert acorda e questiona se na noite anterior, antes dormir, fizeram uma promessa ou terá sido um sonho. O rapaz responde que não foi um sonho, que ele prometeu que não haveriam mais portas trancadas e que ele seria livre, em troca ele jamais o abandonaria. “Não me desiluda” diz Robert. “É tudo o que tenho Robert, sua promessa e a minha”, responde.

Robert é desmascarado por Fulgêncio que mostra a ele que sabe de seu segredo.

O resto da história conhecemos. Vicente- Vera conquista a confiança de Robert, que infantilmente se deixa enganar, conseguindo fugir após matá-lo e a Marília, indo ao encontro da irmã e a mãe.
 
O conflito de Vicente nos leva a refletir sobre a pluralidade das manifestações da sexualidade e da relação masculino-feminino: heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, transexualidade e travestibilidade.
A mitologia refere-se no Banquete de Platão, ao ser Andrógino, hermafrodita, que estaria na origem dos sexos. A androginia seria a nostalgia desse estado inicial, inscrito no inconsciente coletivo, em que o homem e a mulher, buscariam novamente essa unidade no mundo externo através dos relacionamentos. O retorno a essa inteireza original só é possível psiquicamente através do casamento alquímico interno entre o homem e sua Anima e da mulher e seu Animus.
Na maioria das pessoas a percepção de gênero (masculino e feminino) coincide com a do corpo. Se a psique estiver identificada com a figura sexual inconsciente oposta: anima no caso dos homens e animus no das mulheres, ela terá provavelmente orientação homo, e sentirá atração por pessoas do mesmo sexo. Pode acontecer também que a identidade sexual não coincida com a do corpo e haverá o desejo de mudar de sexo. 
Vicente tinha uma identidade Masculina, coincidente com seu corpo de homem e uma orientação heterossexual e teve arbitrariamente seu sexo físico modificado, passando a ter um corpo feminino. Tamanha violação, o transforma em um homem sem Identidade, sem memórias, e o seu próprio corpo uma prisão. Sua memória psíquica persiste, porém no Corpo Etérico, que é inviolável. Existe pior prisão que aquela sem muros? Continua se sentindo um homem, aprisionado num corpo de mulher. Ter um corpo em desacordo com sua alma. Vicente habita um corpo que não é seu e se sente prisioneiro dele não só fisicamente, mas psicologicamente.
Vicente-Vera é um Transexual. Como se comportará ele daqui para frente? Continuará com Identidade Sexual masculina ou sua psique passará também por transformações e ele mudará de Identidade?

E você? Que relação tem com seu corpo?

“A pele que você habita, diz quem você é ou lhe aprisiona”

Quem é Você?  Qual a sua verdadeira Identidade? Quem Habita a Pele?
Somos um Corpo animado por uma Psique ou Alma (pensamentos e sentimentos), animada por uma Presença ou Espírito, por um nous, por meus sonhos, minhas imagens, pelo Silêncio, animado por um Sopro ou Pneuma, que é a Consciência. Somos a manifestação da pura Consciência, que nos habita: a Pele....

A Pele que Habito: A pele que você habita diz quem você é ou lhe aprisiona?