segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


Interpretação do filme Julieta dos Espíritos de Frederico Fellini
                                        Por Verusa Silveira

“Se não acendemos a luz do nosso imaginário, não vemos nada.” Carl G. Jung


Trata-se de uma obra de arte da imaginação criadora do genial diretor de cinema Frederico Fellini, primeiro filme colorido, onde observamos o jogo de luzes e sombras, o preto e o branco nas roupas e nos objetos e  a cor vermelha está  em destaque em algumas passagens representando fogo, vida, paixão, sangue, sexo, o despertar da consciência feminina na protagonista Julieta.
Pensamos nesse filme como um Sonho e tentamos interpretá-lo como tal.  O sonhador dedica essa obra à sua mulher Giulietta Masina, protagonista principal dessa trama, com seu olhar claro de criança transmitindo todas as emoções.

Para Fellini, a produção de um filme é uma descoberta  espiritual, onde os sonhos, as percepções extra-sensoriais, o oculto, estão sempre presentes, o qualificando com um estilo singular, de personagens às vezes grotescos, loucos, bizarros, exagerados em seios e nádegas, representações de seu inconsciente, em sonhos, fantasias, lembranças de sua infância e processo imaginativo fértil  de uma mente aberta para o Universal.  Quando questionado sobre a verdade ou mentira em suas imagens excêntricas, fora do contexto convencional, ele diz que a verdade propriamente dita torna-se secundária.
O verdadeiro artista sempre transita entre a realidade consciente e inconsciente, mantendo a porta aberta para outra dimensão.

Fellini foi analisado no início dos anos 1960 por um analista Junguiano  Ernst Bernhard e se familiarizou com as teorias sobre análise dos sonhos e o conceito de inconsciente coletivo e seus arquétipos, influenciando sua obra. Ele afirma que o pensamento Junguiano oferece uma estrutura  para suas explorações cinematográficas.
Ele foi incentivado por seu analista a escrever e desenhar seus sonhos, exercício que durou até 1990, tendo falecido em 1993 aos 73 anos. Viveu 50 anos com Giulietta e esta só sobreviveu 05 meses após sua partida. Dizem que nesse filme estavam passando por uma crise conjugal. Ela atuou em 08 filmes dirigidos pelo marido. Seu analista faleceu em 1965, ano em que dirigiu esse filme.

Caetano Veloso, cantor e compositor brasileiro e baiano, foi convidado no final dos anos 90 pela irmã de Fellini em nome da Fundação Fellini a visitar Rimini, cidade onde ele nasceu, para fazer uma apresentação, em função de uma música que ele criou inspirado em Giulietta e que a tocara, embora esse encontro não se desse em vida. Caetano se emocionou muito nesse show, apesar de sua voz estar prejudicada e disse que sentia tristeza, orgulho exaltado e vagos medos ligados ao sentido de sua vida. Diz que na realização do show, criou-se uma atmosfera mágica que vem de um sentimento de recuperação metafísica do tempo perdido que é semelhante ao que sente em relação aos filmes de Frederico.  Existiu um amor muito grande entre esses dois grandes artistas.

Nossa proposta é olhar esse filme como um sonho de Fellini, focalizando o tema do feminino.

Cenário:

Uma bela casa branca de dois andares, uma mansão no campo, com uma paisagem bucólica cercada por um lindo jardim onde eram cultivadas rosas.  É uma casa próxima ao mar e a um bosque cercado por árvores. Essa localização especial permite uma riqueza para os devaneios.
Os arquétipos do mar, bosque e jardim são representações simbólicas do Self, arquétipo que representa o centro da personalidade total, consciente e inconsciente; é o núcleo mais profundo da nossa consciência, a centelha divina que vive em todos os seres humanos, a fonte da vida. 

Personagens que habitam a casa: Um casal de meia idade Julieta e Giorgio, duas empregadas jovens Elizabete e Terezinha e um jardineiro.
Julieta é uma mulher refinada, excelente dona de casa, gosta de ler e cultiva seu jardim com amor. Tem uma aparência simples, apesar de bem vestida e de bom gosto, fuma muito e está preocupada com o envelhecimento, olhando sua face no espelho e observando a necessidade de revitalização. É uma mulher de temperamento  introvertido, sensível, é obediente ao marido e respeita as convenções sociais.

Giorgio trabalha como relações públicas, é bem sucedido na profissão, realiza eventos, festas, é um tipo extrovertido, sedutor, veste sempre um terno branco, está sempre ausente, viaja muito e mantém o papel de marido preservado.
A família de Julieta que frequenta sua casa é uma mãe, duas irmãs e duas sobrinhas pequenas.

Sua mãe é uma mulher muito bonita, narcisista, vaidosa, excessivamente arrumada, com rosto frio, distante, dominadora.  Ela critica a filha em relação à aparência, achando-a apagada e Julieta é sempre comparada com a mãe demonstrando inferioridade no nível de beleza e sedução. As irmãs repetem o modelo da mãe, controladoras, fúteis e artificiais.
Uma das irmãs é atriz de televisão, muito centrada em si, narcisista e histriônica. A outra tem um perfil autoritário, deixando as filhas aos cuidados de Julieta que é afetiva e gosta de cuidar.

História:

O início da trama mostra o empenho de Julieta em se arrumar para esperar e seduzir o marido, trocando várias perucas e vestidos, acompanhada de suas amas, que admiram suas peças e emite opiniões.  O clima é de celebração de 15 anos de casamento e esta preparou uma surpresa romântica para o marido à luz de velas.
Ao entrar, ele se dá conta que esqueceu essa data e finge amá-la com uma atitude habitual de marido fiel.

Acender o fogo representa simbolicamente a libido como energia psíquica em seus vários níveis, do sexual ao espiritual.
Giorgio entra acompanhado de um grupo de amigos, artistas extravagantes, médico e advogado, que invadem a casa; Julieta os recebe bem, apesar da frustração; é uma pessoa contida em suas emoções e bem adaptada ao sistema.

Uma das convidadas Valentina é sensitiva e coloca no jardim um mobile para afastar maus espíritos. Outra, escultora, bem sensual se oferece para preparar um prato. Tem um médium Genius radioestesista que traz um pêndulo para percepção de energias extra físicas e fala de astrologia. O clima muda totalmente para um suspense e Julieta está apreensiva, apesar de Giorgio confessar seu amor.
O grupo decide fazer uma reunião mediúnica e invocar espíritos, colocando incensos e se dão as mãos criando uma corrente de energia. Os homens ficam de fora, só o médium participa.

A primeira mensagem é de um espírito Íris: “Amor para todos” sugerindo uma expansão do amor possessivo, fechado, para um amor inclusivo, Universal.
Julieta passa mal durante essa sessão e está muito mobilizada com os novos acontecimentos, despertando para realidades invisíveis, seu inconsciente. Diz que sente medo e fascínio ao mesmo tempo pelos fenômenos do mundo psíquico. Recorda que era uma criança que via o mundo espiritual.

Ao acordar, seu marido já havia saído e ela dirige-se à praia com suas sobrinhas e conversa com seu médico sobre suas percepções da noite anterior, recebendo julgamentos de uma atitude anti científica e dá explicações racionais dos fenômenos, lhe aconselhando a fazer mais amor com seu marido e ficar mais aterrada.
Esta fecha os olhos, e vê uma bailarina no circo se balançando num trapézio, recordação de infância.

O que representa essa imagem como personificação de conteúdos do inconsciente de Julieta?
Mais adiante, aparecem duas rodas girando na praia por dois garotos e uma comitiva que trazia uma tenda para ser armada na praia com uma mulher belíssima de biquíni, bem sensual e acena para Julieta. As sobrinhas vão cumprimenta-la e esta as recebe afetuosamente, sendo a sua vizinha Suzy, uma mulher de temperamento oposto ao seu, bem excêntrica, sensual, livre, exótica. Ela manda oferecer uma cesta de frutas, demonstrando um desejo de fazer amizade. Julieta parece temer esse encontro.

O médico, ao seu lado, observa atentamente esta mulher que se instala na praia. 
Julieta cochila na cadeira e sonha com um velho, vestido com um roupão vermelho saindo do mar puxando uma corda e pedindo que ela o ajude. Em seguida vê uma plataforma encima do mar com cavalos negros mortos e também de pé; num barco, figuras estranhas de homens e mulheres tatuados, semi nús; ela se assusta e pede socorro ao seu médico.

Que aspecto de Julieta pode-se associar a esse velho saindo do mar, pedindo ajuda?
Que lugar é esse que ela ocupou puxando a corda?

Podemos fazer associações ao saber toda história.
Retorna da praia com as sobrinhas e a babá; encontra-se num estado alterado de consciência, entre a vigília e o subconsciente e ouve vozes lhe chamando, está muito perturbada.

Ao chegar a casa, recebe sua família, mãe e duas irmãs que vieram buscar as meninas. Elas se mostram críticas e pouco afetivas, sem Alma.
À noite, ao dormir com o marido, ele sonha chamando Gabriela que a deixa perplexa e inicia a desconfiar de uma traição. Ele nega quando interrogado e ela lembra que alguém está ligando com frequência para sua casa. Julieta finge na sua inocência não acreditar na traição

Toda essa mobilização sugere o fim de um casamento, de uma fase de sua vida, onde os conteúdos do seu inconsciente estão mostrando ameaças, medos, seus instintos animais mortos representados pelos cavalos, cenas de erotismo, desejo, sexo, promiscuidade, aspectos sombrios de sua personalidade reprimida.
Os sonhos são mensageiros do inconsciente e transmitem ensinamentos quando elaborados e compreendidos com o consciente através das quatro funções de orientação da consciência, o pensamento, o sentimento, a intuição e a sensação.

Tanto os sonhos dormindo quanto os devaneios, o sonhar acordado e as fantasias exigem atenção do sonhador. Sonho e Realidade se misturam nessa trama que envolve drama, suspense, comédia...
Julieta decide aceitar o convite da sensitiva Valentina para fazer uma consulta a um vidente famoso Bishma. Vai dirigindo seu carro e chove muito. É uma tentativa de enfrentar seu destino com coragem.

O vidente é considerado tendo o segredo dos dois sexos, um ser humano dotado de poder advinha tório como um oráculo. Ao subirem as escadas do edifício, as luzes se apagam e se ouvem trovoadas e relâmpagos; as forças da natureza estão bradando assim como a vida dessa mulher em transformação, como um vendaval.
Julieta está vestida com duas cores fortes, vermelha e verde e um lenço vermelho na cabeça; está bem bonita, apesar do medo e da tristeza.

Ao chegar ao edifício tem uma cerimônia de casamento e ela se detém a observar o juramento de união para sempre.
O vidente está manifestado por espíritos e faz várias perguntas e comentários sobre sexo, relação com o corpo, gostar de si e vivenciar o prazer.

“Conhece o Kama Sutra”?
“O Amor é uma “Religião” O Amor é também Arte.”

 Da prostituição?
 Você é a sacerdotisa do culto. Associamos à prostituta sagrada quando se fazia amor nos templos antigos, com um desconhecido, na iniciação aos mistérios do amor honrando Eros e Afrodite e escolhendo servir à deusa do Amor. O prazer estava associado à união da sexualidade com a espiritualidade.

“Na Tradição Antiga da Índia, o amor como religião é” amar a todos os seres’, expandir esse sentimento, a mesma mensagem do espírito na sessão mediúnica.
Julieta vê novamente a imagem da bailarina encima de um cavalo no circo.

Está muito apreensiva, e ao se despedir, Bishma dá uma nova mensagem de que “algo novo e muito bonito ocorrerá nessa noite”.
Voltam pela estrada com muita chuva, relâmpagos e trovoadas. Mistério!...

Julieta conta a Valentina enquanto dirige que seu avô apaixonou-se por uma bailarina do circo que era belíssima.  Ao relatar, vê as imagens desfilando em sua mente.
Ela é uma criança e está sentada no colo de seu avô; em seguida, caminha pelo circo fazendo contato com os personagens, animais, vê elefantes, acrobacias, etc.

Vê sua mãe fria e bela no camarote como observadora, assistindo ao espetáculo com um olhar frio e distante.
Seu avô confessa sua paixão para a neta e diz que uma bela mulher o torna religioso. Essa cena está repleta de homens agressivos que lhe assustam. Vê um avião primitivo, tipo 14BIS e diz que sempre imaginou que seu avô e a bailarina tivessem fugido no avião do circo.

Este foi repreendido pelo Reitor e expulso de todas as escolas do reino... E desapareceu. Um dia, ele voltou alegre e sua filha não o aceitou em casa. O bispo havia dito que ele tinha parte com o Diabo. Ainda criança, foi ao funeral de seu avô, e sua mãe não chorava. Ela trajava um vestido preto e estava linda como uma rainha sem coração.
Esse avô foi internalizado em sua memória como uma figura de fantasia idealizada, livre de preconceitos e ao mesmo tempo proibitivo. O circo representa o lúdico, o riso com os palhaços, jogos perigosos que exigem coragem como o trapézio, domar animais, um mundo de fantasia, beleza e criatividade.

Sua mãe foi internalizada como uma figura autoritária e repressora a quem ela devia obediência bem como às normas sociais estabelecidas do casamento, as prendas domésticas, vestir-se bem para estar sempre bonita e sedutora. Ela se opôs ao modelo materno criando uma formação reativa, indo para o oposto, contida, passiva, reprime suas fantasias lúdicas, sensuais, eróticas, mostrando-se como uma dona de casa exemplar, enraizada no cotidiano, com uma sexualidade reprimida cheia de recalques.
Valentina é seu oposto, voadora, sem raízes, se sente abandonada e procura nos oráculos, apoio e suporte na vida. Admira sua amiga e quer ajuda-la. Ambas estão com crise de identidade, de dar sentido às suas Vidas, se sentindo solitárias.

Ao retornar da consulta, Julieta avista no jardim um belo homem citando versos na neblina cinzenta, como foi previsto pelo vidente.

“Rosa áurea”.
Personifica o cultivo desse jardim por alguém que ama muito.

Faz um drink e lhe oferece. Entram num encantamento de enamorados.
Seu marido chega e apresenta seu amigo José, empresário e  toureiro que o hospeda na Espanha. É um homem rico e simples. Diz:

“O que vale é a doçura dos gestos... O equilíbrio.
O bom toureiro deve ter o coração puro... E o pensamento límpido.

Como os frades e os dançarinos.”   
Demonstra sua veia poética e seu estilo como toureiro. Julieta está fascinada com sua coragem e sensibilidade e empresta seu lenço vermelho para que ele possa aplicar sua arte com paixão. Ela se fez bela, vestindo um casaco de pedras bem colorido e está alegre. Seu marido está bem apagado nessa noite mágica, diante da empatia que se criou entre eles. Julieta experenciava emoções bem fortes que lhe ajudavam a ressignificar seu caminho como mulher desejada.

José expressou sua anima, arquétipo da feminilidade inconsciente do homem através da poesia, dos gestos afetivos, falou de Amor e ao mesmo tempo foi viril e corajoso ao demonstrar sua luta com o touro. Suas polaridades ficam bem evidentes.
Esse encontro com José é um despertar na psique de Julieta, do amor e da paixão por um desconhecido, dando um corte na sua relação vazia, monótona, fria, artificial com seu marido, criando Alma e possibilidade de uma projeção de seu Animus, arquétipo da masculinidade da mulher representando o intelecto, a palavra, a coragem, iniciativa, espírito, autoconhecimento.

O símbolo do Touro representa o aspecto animal instintivo, viril e físico de nossa psique, arquétipo da sombra.
José presenteia o casal com um telescópio, objeto simbólico que amplia a percepção visual.

“Estranhos jogos do Destino”...
 A psicologia analítica ou profunda fala do fenômeno da Sincronicidade, onde não existem coincidências, mas... Uma conexão simultânea entre eventos internos, subjetivos e fatos externos objetivos, gerando uma atração onde possa realizar-se uma alquimia de transformação. É a própria Vida unindo Almas em processo evolutivo.

José expressa em poesia:
“Que resta ao mundo sem uma noite como esta”?

“O encontro com um amigo”.
“A volta da calma perdida”.

“Tudo se torna claro, plausível”.
Julieta olha no telescópio e vê de novo a bailarina do circo, num momento de prazer.

Será que ela reconhece essa fantasia em seu íntimo?
Como ela internalizou esses elementos de Sombra a partir desse avô transgressor?
A figura paterna é desconhecida na sua história. Em suas imagens internas, aparecem muitos homens ameaçadores que podem representar a projeção de seu animus negativo.

No outro dia, ela escuta seu marido dialogando com a amante ao telefone. Sua irmã Adele, a incentiva a procurar um detetive para seguir Giorgio. Ela reluta a princípio, pois teme saber a verdade concreta.  Entra em uma nova fase onde o arquétipo da sombra, o mal reprimido, a mentira, as proibições estão presentes com intensidade. As máscaras começam a cair.
Relembra uma passagem de sua infância, onde representou uma santa mártir que foi queimada no teatro da escola e as freiras vestidas de hábito preto desfilam em sua frente, como na inquisição se queimavam as bruxas, mulheres sábias, intuitivas, com poderes de perceber as realidades invisíveis.  Sua relação com o divino aparece de uma forma sombria na ideia do pecado e do martírio imposto pela Igreja Católica para salvar a Alma.

Lembra-se da colega Laura que indaga se ela viu Deus e qual é sua relação com Deus?  Essa colega se matou por amor e disseram que foi acidente por afogamento. Revive a verdade nesse instante.
Na sua imaginação, seu avô aparece e manda retirar a neta do sacrifício e pede que lhe obedeça; sua mãe está ao lado do reitor que representa o poder e a repressão.

Julieta está conflituada, cheia de culpas, atravessando o lado sombrio da realidade; despertou o amor através de José e sente-se traída pelo marido. O que fazer?
Quando volta do detetive, tem uma visão em seu jardim que José está tocando violão; seu desejo de amor e sexo é evidente. O desejo é aceso pala falta de algo que se torna vital para ela.

Vai visitar a amiga escultora, mulher livre e apaixonada pela sua arte; dialogam sobre a visão de Deus e ela transmite a imagem de Deus como física e espiritual. É uma mulher autônoma e realizada a nível profissional e afetivo, é amorosa e satisfaz seus desejos sem culpa.
Esses encontros representam aspectos latentes da psique de Julieta em transformação, resgatando sua Alma, sua individualidade.

 “Quem sou eu”? 
Uma nova aparição no jardim, de um gato preto com laço vermelho no pescoço, animal de sua vizinha. Os gatos são símbolos femininos, introvertidos, contemplativos, sensuais, e eram companheiros das bruxas.

Julieta acolhe o animal com ternura, revelando uma empatia e encontra um pretexto para visitar Suzy; é uma casa bem bonita, cheia de obras de arte, várias esculturas e muitas flores.
Suzy a recebe com alegria e diz que sonhou com ela numa igreja e a reprovava, tendo chorado muito e acordou em lágrimas.

Esse sonho revela como sua vizinha a vê de maneira sagrada e repressora. O encontro de personalidades diferentes pode gerar uma transformação para ambas. Julieta está com muito medo, entrando nessa casa desconhecida, com uma mulher singular, solteira, e namora com vários homens, vive num palacete cercada de mordomias e vários personagens vivem nesse lugar: Sua avó que não dorme há cinco anos vê e sabe tudo, é uma maga; Arlete, uma mulher com distúrbios psíquicos, já tentou suicídio três vezes com depressão, sendo salva por Suzy que a protege. Julieta lembra-se da colega Laura já morta.
Suzi convida para uma festa em sua casa com seu marido e diz que gostaria de amar um só homem, mas não consegue; parece admirar o estilo de vida oposto ao seu.

Ela mostra sua intimidade levando-a para seu quarto rodeado de espelhos, cheio de fetiches e diz que os homens têm cada fantasia... Da sua cama desliza para um túnel onde cai na água quente como uma piscina. Diz: “Após fazer amor, escorregamos”.  Ela convida a amiga para experimentar e esta se recusa, mas... Vivencia a fantasia.
Caminham pelo bosque de bicicleta e Suzi diz que mantém o fogo aceso e não se nega a nada. Julieta ouve vozes: “Suzi é sua mestra, ouça e siga”.

Ela fala de seu casamento e que Giorgio é tudo para ela, o seu mundo... Esposo, amante, pai, amigo e minha casa; não menciona a traição. Um carro conversível  branco as acompanha com dois homens e Suzi os seduz com um espelho iluminando o caminho para chegar ao seu quarto que fica em cima de uma árvore e sobe manipulando uma alavanca e sentando numa cadeira. Julieta não aceita o convite para o sexo e se despede quase fugindo com medo.
Esse personagem Suzy é semelhante à visão da bailarina; uma mulher linda, sensual e corajosa, um aspecto latente na psique de Julieta.
Ela retorna ao detetive só e descobre que a amante de seu marido é uma jovem modelo de 24 anos e se chama Gabriela, confirmando o sonho de Giorgio. Ela chora muito.
O detetive é um senhor sinistro, ambivalente, astuto, dando mensagem dupla de moralidade em relação ao casamento, de permanecerem juntos e ao mesmo tempo dá ênfase às descrições que incentivam a separação e diz que presta serviço ao próximo. O psicólogo que o acompanha é um tipo superficial e descreve a personalidade pelas fotos dos clientes e seus comportamentos. Formam uma dupla de espiões natos.

Peripécia ou desenvolvimento do sonho:
A protagonista entra em nova fase e decide ir só à festa da casa de sua vizinha. Veste-se de vermelho e está sedutora e bem atraente. Diz que seu marido confia totalmente nela; ainda tenta justificar sua nova conduta livre. Ao entrar, é apresentada ao namorado de Suzi de 65 anos que gosta de fazer amor todos os dias. Julieta finge estar bem, mas seu olhar é triste.

Diz que tem vontade de se divertir. “Quero que seja feliz”, diz sua amiga. Nós reconstruímos o clima de uma casa de prazer. Entra um jovem bonito que ela apresenta como seu afilhado e Julieta fica atraída e o cumprimenta. Logo em seguida, tem uma visão de estar ardendo em chamas, de ser queimada na fogueira. Sai correndo. A sua consciência não permite que ela se liberte e faça sexo com um homem que lhe atrai.
Quando retorna em sua casa está tendo uma sessão de psicodrama com a Dra. Miller. Julieta aceita participar para espanto de Giorgio; ela está mais decidida e encarando a verdade, necessitando de ajuda para enfrentar seus conflitos. Vê várias imagens no seu campo mental, mulher enrolada numa serpente como Eva ou Lilith, seu oposto, representa a mulher liberada, que tem orgasmo. Vê-se na fogueira em chamas. Vê José e indaga se ele é real e o que lhe aconselha. Ele responde que só quer que ela viva bem. Está totalmente perdida, conflitada em seu mundo subjetivo.

O advogado diz que a lei já não requer flagrante no adultério e que basta uma prova e seu marido será condenado. Fala como um amigo que se interessa por ela.
A psicodramatista diz que Julieta identifica-se com o problema e esse é o seu erro. Caminham pelo bosque e aponta as grandes árvores como símbolo de uma forma de viver, profundamente enraizadas à terra e abrem os ramos em todas as direções, seu crescimento é espontâneo e este é o grande e simples segredo a ser aprendido.

Realizar-se espontaneamente... Sem conflitos, com desejos e paixões. Às vezes, é necessário falar com voz alta... Mesmo se é um estranho que nos ouve.
Deite-se na grama, relaxe... Não tenha receio. Olhe o sol entre os galhos. Tudo é paz, serenidade. Do que teme? Que seu marido a deixe. Na realidade, é o que deseja, quer ser deixada só. Sem ele, começaria a respirar, a viver... A ser você mesma. E pensa ter medo. Na verdade, tem medo de uma coisa, ser feliz.

Clímax ou suspense:
Julieta vai procurar a amante do marido que não se encontra em casa; é recebida pela empregada que arruma sua mala para viajar com Giorgio. Ela informa que seu namorado está muito apaixonado por ela, ficam bem juntos, ela o merece, escolheram os móveis juntos da casa e de bom gosto. Gabriela telefona e Julieta faz questão de se apresentar como esposa e esta a trata indiferente e que não tem o que falar com ela.

Julieta continua sentada naquela casa, vendo o retrato de seu marido, arrasada, humilhada, deprimida, chegando ao limite de sua virada.
Retorna à sua casa e encontra seu marido arrumando sua mala só pela primeira vez e ainda continua mentindo que vai fazer uma viajem para descansar. Ela, também continua fingindo, sem expressar suas emoções, o tratando bem como uma dona de casa maternal e despedem-se friamente, usando a razão lógica para se defender do fim de uma relação que representa uma morte psíquica. Ambos mantêm as aparências, as convenções representando o arquétipo da Persona.

Lysis ou Final do Sonho:
A empregada fecha todas as venezianas brancas, marcando o final de um Sonho.

Julieta chora a dor da despedida e ouve a voz de um espírito dizendo que faça o mesmo que ela e vem à lembrança de Laura que morreu por amor, espírito obsessor que acompanhou toda a jornada de Julieta.

Continua desfilando em seu campo mental várias imagens do passado e do presente; vê as freiras de preto, vê o jovem bonito vestido de branco, vê José, o toureiro, o velho de vermelho, o detetive e o psicólogo, Suzi descendo em sua cadeira que dá acesso ao seu quarto, o caixão da amiga, o avião do circo com seu avô, vê sua mãe e ouve seu médico dizer: Compre um cavalo, salte obstáculos, nade...

Relembra a psicodramatista:

“Sem Giorgio, começaria a viver, a respirar...”.
Julieta revê toda sua vida em alguns instantes, vai para seu quarto, acende a luminária como de costume, pega seu livro e não consegue acalmar sua ansiedade. Pede ajuda a sua mãe em seu íntimo e vê uma expressão malévola, exigindo obediência.

Vê uma nova porta que não se abre e afirma que sua mãe não lhe amedronta mais. Vê vários rostos amedrontados e as freiras. Vê a menina entre as chamas e desamarra os laços que a prendem e se abraça com ela, indo ao encontro do avô.
A última imagem é um carro alegórico, mistura do circo e dos personagens da casa de Suzi, seus amigos e todos que fazem parte de seu mundo interno e externo. Ela se despede do avô, ele diz que ela não precisa mais dele: “Também sou invenção sua... mas você é a Vida! Adeus Bistequinha.”

Supomos que o velho de roupão vermelho que sai do mar e pede ajuda é seu avô que funcionava como sua identidade masculina, paterna, imagem de animus, modelo idealizado de vida, um guia espiritual, representado pela cor vermelha e associado ao Diabo, ao bem e mal. Entregar a corda simboliza passar a responsabilidade de sua vida para que ela assuma suas polaridades masculina e feminina, sua autonomia. É o fim de um ciclo e recomeço. Morte e Transformação.
Todos esses personagens construíram essa possibilidade, sendo aspectos da psique de Julieta em metanóia.

Ela abre sua porta que dá para o jardim, recebe o vento, respira, ouve os espíritos lhe dizerem que são amigos verdadeiros, está serena, pois integrou sua realidade subjetiva e objetiva, sua psique está fortalecida, é uma mulher madura e amorosa.
Sai caminhando só pelo bosque entre as grandes árvores e inicia seu processo de individuação ou desenvolvimento da personalidade consciente e inconsciente.

Focalizadora: Verusa Silveira, psiquiatra e psicoterapeuta Junguiana, coordenadora do Núcleo de Estudos Junguianos- Bahia.
Realizado em 28/11/2012, em Salvador - Bahia 

 
Bibliografia:

Sam Stourdzé, TUTTO FELLINI
Edições SESC-SP

C.G. Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões
Editora Nova Fronteira

Robert Johnson, A Chave do Reino Interior
Editora Mercuryo

Nancy Qualls-Corbett, A Prostituta Sagrada
Editora Paulus

Aldo Carotenuto, Eros e Pathos: Amor e Sofrimento
Ed. Paulus

 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Julieta dos Espiritos



Nosso próximo filme é uma obra prima do grande diretor Fellini sobre o tema do Feminino, dedicado à sua mulher Giuletta Masina.

Venham compartilhar conosco e divulguem! Após o encontro, postamos a interpretação. Opinem!

quinta-feira, 7 de junho de 2012


A Pele que Habito
Por Márcia Hita


Qual é a Pele que Habito?


Título Original:  La Piel que Habito
Gênero: Drama
Direção e Roteiro: Pedro Almodóvar
Fotografia: José Luiz Alcaine

Elenco:  
Antônio Banderas -Roberto Ledgard
Elena Anaya -Vera Cruz
Marisa Paredes - Marília
Jan Cornet -Vicente
Bianca Suárez -Norma Ledgard



De que Pele estamos falando?

 A Pele é o maior órgão do Corpo Humano, a interface entre o meio interno e externo, sendo responsável pelas sensações do tato e pelos prazeres do toque. É o catalisador de tudo que é transmitido, sendo um órgão de memória e informação. Expõe as marcas do tempo, revela nossas experiências e nosso estado emocional, reflete nossas raízes e as diferenças biológicas e geográficas, revelando muito do que somos e o que já passamos.

Simbolicamente, a “Pele que Habito”, representa a Identidade, que é o conjunto de caracteres  exclusivas de uma determinada pessoa: nossa personalidade. A sua formação é dinâmica e contínua desde a gestação até a morte, pois estamos sempre em Gênese. Múltiplos fatores estão envolvidos em seu desenvolvimento desde nossa história biológica, familiar, escolar, social e cultural, até nossas crenças. Está atrelada ao desenvolvimento do ser de uma forma integral, a estruturação do Ego e ao Processo de Individuação.

Nas primeiras etapas da vida estamos muito identificados com o Ego e com a Persona que são as máscaras (ou papéis) que aprendemos a representar na vida. Já na segunda metade existe uma reorientação dos desejos em direção aos níveis mais profundos do ser e começamos a nos questionar sobre e sentido real da experiência humana.  À medida que isso acontece o indivíduo vai se tornando único e tomando posse de sua verdadeira essência: seu Self.

A Pele que Habito é indiscutivelmente um “Almodóvar” e apesar de ser um filme diferente na cinematografia do diretor, podemos reconhecer sua marca única em toda a trama.

Estão aí suas obsessões com sexualidade, identidade sexual, diferenças entre os sexos, aceitação do corpo e traição. Temos também presentes os transtornos de personalidade, abuso de poder, solidão e morte.
Aos close-ups e as cores (que estão mais sóbrias), o cineasta acrescentou com maestria, um misto de ficção científica e suspense, mesclando todos os gêneros realizados anteriormente.
O filme foi inspirado no romance “Tarântula” (Mygale) de Thierry Jonquet, publicado em 1984 sobre um homem que prende sua esposa em um quarto mantendo-a prisioneira, como a aranha faz com sua presa e no filme “Os olhos sem rosto” de Georges Franju de 1959 que fala do desespero de um médico que tenta recuperar com transplantes a face destroçada da filha. 
A Pele que Habito é um filme que retrata a Sombra humana que é o lado reprimido e negado de nossa personalidade e revela a profunda dissociação que estamos vivendo: a loucura na família, na sociedade e na ciência.
 O cenário é Toledo, cidade histórica próxima a Madrid, paisagem belíssima e bucólica, numa casa com nome romântico, “El Cigarral”, que esconde uma realidade sinistra. As cigarras são insetos que passam por uma metamorfose durante a vida, deixando seu exoesqueleto e “mudando de pele”.
Sem seguir uma ordem cronológica, o filme começa em 2012 e o cineasta escolhe nos contar o passado, recuando 12 anos no tempo, dentro do universo onírico, através de dois sonhos, dos protagonistas, que ocorrem simultaneamente. E é assim que aos poucos vamos juntando as peças da trama e entendendo melhor o enredo e a história dos personagens. Com os sonhos é possível “brincar” com os símbolos, pois o cinema é onírico por natureza!

Inicia apresentando Vicente-Vera, em seu corpo de mulher, preso num quarto, vestido em uma malha que lhe molda o corpo, meditando, fazendo asanas do Yoga e trabalhos artísticos. Depois conhecemos o dr. Robert Ledgart eminente cirurgião plástico que palestra a respeito da importância da reconstrução do rosto nos acidentados.
Famoso por suas pesquisas para desenvolver uma pele artificial de alta resistência, seu trabalho não é reconhecido nem aceito no meio científico por usar métodos transgênicos, misturando material genético humano ao de suínos.
 Fica claro que Robert mantém Vicente-Vera em cárcere privado, utilizando-o como cobaia para seus experimentos clandestinos. Seu único contato com o mundo externo é o médico, a TV e a governanta da casa Marília, com quem se comunica por interfone. Esta o vigia por um sistema de circuito de imagens, lhe mandando alimentos, remédios e livros por um elevador mecânico. 



Dr. Robert é um voyeur e observa sua presa, seu objeto de desejo, Vicente-Vera do seu quarto através de um telão, num comportamento sádico e perverso. O prisioneiro inconformado com sua condição tenta fugir e libertar-se sem sucesso, através do suicídio.

 O médico lhe fornece drogas e observa-se entre os dois um clima de tensão, obsessão e sedução. Vicente-Vera questiona sobre seu destino, seu futuro: “Você está satisfeito com sua obra? Gosta do que vê? Se estou terminada o que vai fazer comigo? Não acha que o mais simples seria viver, conviver como todo mundo? Sou sua...



No dia anterior a noite dos sonhos, Zeca, filho de Marília, governanta da casa, aparece no “El Cigarral” depois de mais de 10anos, fantasiado de tigre, pois era Carnaval. Utiliza-se da esperteza, da chantagem emocional e da sedução para entrar na casa e fugindo da polícia, quer que Robert lhe opere o rosto para não ser reconhecido. Ele é um homem de porte robusto, dominado pelos instintos básicos (sobreviver, lutar e fugir) e dominado pela Sombra.

Na TV uma mulher diz sincronicamente: “A todos por trás das máscaras”, mostrando o assalto e o assassinato praticado por Zeca. A fantasia que ele escolhe já diz muito de suas características e de sua Persona.

Vê Vincente-Vera nos monitores da cozinha da casa e o confunde com Gal, ex-mulher do Dr. Ledgard. Procura-o pela casa, depois de prender e amordaçar a mãe que assiste tudo pelos monitores da cozinha. O tigre-Zeca escolhe sua presa, a domina e a devora. Na esperança de fugir, Vicente-Vera entra no jogo do agressor pedindo que o leve com ele e é violentamente violentado. O médico chega nesse exato momento, matando-o pelas costas, tendo apontado a arma primeiro para o rapaz.

Enquanto Robert sai para enterrar o corpo, Marília conta a Vicente-Vera os segredos da família no jardim diante do fogo, que arde. Ela confessa que Zeca e Robert são seus filhos, mas que ambos desconhecem esse fato. O Tigre é filho de um ex-empregado da mansão e não foi criado por ela, crescendo longe no Brasil e o médico é filho do seu patrão Sr. Letgard, que o assumiu e criou com sua esposa pois o casal não podia ter filhos.

Observamos uma mãe frustrada, omissa, com profundos sentimentos de culpa, que faz clara preferência entre os filhos, nutrindo um amor neurótico por Robert em detrimento ao desprezo que tem por Zeca. Por ele fora capaz de viver uma vida inteira no anonimato, como governanta, e seu uniforme já lhe confere a máscara que adotou para se esconder e poder cuidar e servir o filho que escolhera amar.

Apesar de terem desenvolvido Personas completamente opostas: um com pouco nível educacional, dominado pelos instintos, o outro instruído e intelectual, os dois irmãos apresentam distorções comportamentais e de caráter. 

Marília fala sobre a relação dos dois filhos com Gal, a esposa de Robert que a 12 anos atrás apaixonada foge com Zeca, abandonando o marido, sofrendo um acidente de carro que a deixa completamente queimada. Conta como ele ficou ao seu lado, dia após dia, pesquisando sem parar e cuidando da esposa, relatando as circunstâncias trágicas de sua morte. Um dia depois de muitos meses, Gal começou a melhorar e ouviu a filha Norma que brincava no jardim cantar “Necessito amar” em português, música que ela tinha ensinado a filha. Neste instante Gal sentiu uma profunda emoção, o que não acontecia há muito tempo e quando abriu a janela para ver sua filha, viu sua imagem desfigurada refletida no vidro. Seu grito de dor e desespero ecoou em toda a casa e ela atirou- se pela janela, suicidando-se na frente de Norma que anos depois também suicida-se. 

Ao retornar para casa, Robert e Vicente-Vera vão dormir juntos, pela primeira vez, ele está apaixonadíssimo e o deseja, este o seduz usando suas novas armas femininas e pede para não ter relações sexuais com ele, pois está machucado e muito cansado com o estupro de Zeca.

 Os acontecimentos trágicos do dia: o estupro de Vera-Vicente por Zeca e o seu assassinato reavivam o passado traumático na mente dos dois que sonham quando adormecem. O sonho do rapaz é maior e muito simbólico sendo também influenciado pela conversa que teve com Marília.


Dr. Robert Letgard esconde atrás da máscara de intelectual fino e médico bem sucedido sua personalidade psicopática. Com graves desvios de caráter, é frio, calculista e sem capacidade de ter emoções genuínas. Manipulador é insensível aos sentimentos do outro que é visto como coisa, não sente remorso ou culpa pelos atos cruéis que pratica. 
Inflado, coloca o Ego no lugar do Self, pensando e agindo com se fosse Deus, (Complexo de Poder: Zeus). Vingativo, com tendência a realização de castigos e punições, impõe sua justiça pessoal, olho por olho e dente por dente, imaginando ter a vida e o destino das pessoas em suas mãos, e o controle de tudo. Na verdade esconde um Ego frágil, desestruturado, sendo provável que a não aceitação de sua origem, a negação da verdadeira mãe, tenha gerado um trauma infantil, e ter sido um dos fatores na gênese de sua patologia, (Complexo Materno Negativo).
Sua mente era brilhante e poderia utilizar sua inteligência e sua capacidade em pesquisas para a evolução da ciência e da medicina, ao invés disso age de forma antiética, abusando de poder usando cobaias humanas e pesquisando com material geneticamente modificado. 
Dr. Robert sonhava com uma família perfeita: Era casado, tinha uma filha, e sua esposa era o grande amor da sua vida, acreditando ser correspondido. Seu amor era do tipo obsessivo e idealizado e sua esposa era materialização do seu animus (figura feminina interior do homem). A aparente felicidade, no entanto é abruptamente rompida quando inesperadamente seu sonho é destruído e descobre que sua mulher fugira com outro homem, um golpe enorme para seu orgulho, vaidade, sua masculinidade, seu Ego.
Na fuga sua esposa sofre um acidente de carro, atraindo a fatalidade e ficando com seu corpo inteiramente queimado e o rosto desfigurado.  A traição, a perda do objeto idolatrado e a frustração o traumatizam... Nega-se a enfrentar o fato invertendo o lugar de traído para salvador, e investido neste arquétipo, (Mito de Prometeu) muito comum em alguns médicos, procura desenfreadamente desenvolver uma pele artificial para recompor o rosto e o corpo de sua amada, prolongando sua vida evitando sua morte (sombra da medicina), dedicando-se totalmente a ela. Mantê-la viva, desfigurada, também é uma forma de se vingar, mantendo-a prisioneira de seu corpo. Desta forma beneficia seu Ego, colocando-se em lugar de superioridade.
 Amor e ódio se misturam numa relação sado-masoquista. Em sua obstinação e loucura é capaz de tudo para realizar seus propósitos frustrado-se novamente por não conseguir salvá-la, pois ela se suicida de forma trágica como vimos, jogando-se da janela diante da filha que assiste tudo. 
Depois da morte de sua esposa, Robert, projeta todo o amor que sentia por ela na menina que passa a apresentar a partir daí sintomas de severa dissociação com transtornos histéricos e fobia social. 
O sonho de Robert é o retrato da sua mente e descreve o seu ambiente psíquico. Preso ao passado não consegue se libertar dos seus traumas, revivendo a situação do suposto estupro da filha ocorrido no casamento de Casilda, uma amiga, a seis anos atrás.
Uma atmosfera dionisíaca, promíscua, de liberdade sexual, de casais mantendo relações sexuais isolados ou em grupo mostra o sonhador observando entre os arbustos, confirmando um dos traços de sua personalidade perversa, o voyeurismo e revelando também aspectos de sua sexualidade, dos seus desejos e fantasias reprimidos.
 A preocupação exagerada com a filha, de quem vigia os passos, expõe sua necessidade de controle e superproteção. Provavelmente a trata como criança e nega que já é uma mulher com desejos próprios sufocando-a. Duplo equívoco: a menina entra em crise histérica ao ser tocada por Vicente, o pai quando a encontra interpreta mal a cena e pensa que a filha foi estuprada, esta quando acorda tem nova crise histérica e pensa ter sido estuprada pelo pai, indicando sua imaturidade emocional, infantilidade e um Édipo (Complexo Paterno Negativo) mal resolvido. Neste momento, Robert desperta angustiado, por ter reexperimentado a emoção da cena, olha para Vicente-Vera, que está deitado ao seu lado, o abraça e volta a dormir.

 Norma não consegue libertar-se de seu destino e segue o modelo da mãe suicidando-se como mecanismo de fuga. Sua morte reativa o trauma original de Robert, que sendo incapaz de lidar com suas dores e perdas, endereça seu desejo de vingança para o suposto estuprador de sua filha, Vicente, projetando nele toda a culpa de seu sofrimento.
Como a filha ocupava o lugar da mãe nada como vingar-se fazendo com que ele devolva o seu objeto de desejo: sua esposa. Daí a idéia de “transformá-lo” na própria Gal, uma mulher.... Robert seqüestra Vicente e o mantém prisioneiro. Depois muda seu sexo e utiliza nele a Pele artificial que desenvolvera a fim de construir para ele um corpo feminino. Faz isso de forma arbitrária, meticulosa e planejada como bom perfeccionista que é. Podemos observar aí a busca pela mulher idealizada e a tentativa de reconstruir sua imagem: um Dr. Frankstein moderno e novamente o ódio e o amor juntos.


 Constela-se aí o Mito de Pigmalião, quando o artista se apaixona por sua própria obra que na verdade é um reflexo de si próprio e de sua estrutura narcísica (Mito de Narciso). Robert em sua insanidade apaixona-se por Vicente-Vera, mas apaixonado se deixa seduzir por ele e cego não consegue ver que caíra em sua própria teia, transformando-se em presa. Paixão e obsessão se misturam e sua morte é conseqüência de suas próprias condutas, pois ele mesmo a atraí para si. 
Vicente é um rapaz jovem, bonito, com uma sexualidade expressiva, heterossexual convicto mostra-se confiante com as mulheres e é correspondido em suas investidas. Usuário de drogas e freqüentador de baladas, provavelmente trabalhava com sua mãe em seu brechó, como estilista e programador visual. Não há referências masculinas em sua vida e parece viver somente com sua Mãe.
Seqüestrado e mantido prisioneiro por Robert durante seis anos, foi violentado e torturado no nível físico e psíquico tendo todos os seus direitos de cidadão e Ser humano suprimidos. Sem poder defender-se viu seu sexo ser mudado arbitrariamente e o seu corpo masculino ser substituído por um feminino.

No seu sonho Vicente-Vera revive tudo o que lhe aconteceu desde a festa, o encontro com Norma, o suposto estupro, seu seqüestro e toda a metamorfose que passou.

No início do sonho, ele está no brechó de sua mãe, que vende roupas femininas, costurando uma roupa para um manequim-espantalho que simbolicamente representa ele mesmo, um corpo de mulher sem vida, sem rosto, sem identidade, exposto em uma vitrine. Os inúmeros símbolos apontam para os sentimentos do sonhador em relação ao seu corpo, a não aceitação de sua nova condição, das alterações corporais profundas e mudança de sexo forçada. A identidade de um homem num corpo de mulher...

A cena sai do sonho e volta para Robert e Vicente-Vera deitados na cama e a câmera se desloca para o rosto dele, que continua a sonhar. Entramos novamente no sonho, e ele já se encontra na festa. A imagem é sobreposta e vemos o rosto de Vera e Vicente frente a frente.



 Recorda o dia do casamento, o encontro e o flerte com Norma, seguido da saída para o jardim. Ele está “chapado”, e ela diz que também está drogada com seus remédios. Começam a namorar e Norma sente a necessidade de se livrar de suas roupas, libertar-se de suas máscaras, que a sufoca. A menina divide-se entre o desejo e o medo, entra a criança e a mulher enquanto Vicente a despe a beija e a toca. 

Nesse momento, sincronicamente a cantora Concha Buika começa a cantar a música “Necessito amar”, revivendo a sua memória traumática com a lembrança da morte de sua mãe e precipitando uma crise histérica. (A voz da cantora confunde-se no final coma voz infantil de Norma contando em português). Vicente é mordido na mão por ela e aturdido lhe  dá um tapa ,  esta  desmaia, e ele foge do local depois de vesti-la com cuidado.

Ao sonhar que sua mãe vai à delegacia de polícia, Vicente-Vera expressa o desejo de ser lembrado por seus caros e deseja que sua mãe não se esqueça dele e não desista de procurá-lo.

Desespero, medo, solidão, ansiedade, o desconhecimento de seu destino, a possibilidade de ser morto, a falta de controle. Apesar disso ele sobrevive... Como?

Para se manter conectado com o tempo ele passa a escrever na parede do quarto, anotando as datas, dia após dia, escrevendo frases e desenhando. As frases simbolizam o esforço do personagem em manter-se vivo psiquicamente e não sucumbir às adversidades que lhe aconteceram. São comandos verbais afirmativos: “Respiro, sei que respiro”, 40 minutos fora daqui”, “O ópio me ajuda a esquecer”,” A arte é a garantia de saúde”. Desenhos de um corpo com a cabeça em forma de casa e um outro deitado com a cabeça de casa de cachorro, também mostram o conflito a Identidade e seu aprisionamento dentro de seu próprio corpo.

 A leitura foi um recurso de aprendizagem e informação, assim como a TV uma das suas poucas ligações com o mundo externo. Os três canais que assistia mostram-lhe recursos para a sobrevivência. O primeiro canal mostra um guepardo brincando com um filhote de cervo antes de matá-lo, a cena reproduz o que Vicente-Vera estava vivenciando, e a estimula a acionar seus instintos.

No segundo uma mulher dá aulas de Yôga e ensina que existe um lugar inviolável, um refúgio inacessível dentro de nós. A prática diária e disciplinar da posturas ou asanas, permite que ele diminua a ansiedade através da respiração, e o reconecta com o seu novo corpo que vai devagar tomando posse. A meditação refaz o contato com seus níveis mais profundos de Consciência, desenvolvendo tranqüilidade, paz, centramento e lucidez para enfrentar a situação.
  

Um terceiro canal mostra uma pessoa sendo coroada Rei, que representa o Self, e trás a mensagem que ele tem que buscar a inteireza.
   
Podemos observar o mesmo padrão dos manequins nas esculturas que ele começa a produzir inspirado no trabalho de Louise Bourgeois que conhece pela TV e através de livros. São esculturas de argila recobertas de retalhos de panos sem rosto. Vicente–Vera é um homem sensível, com uma figura feminina interna; a anima desenvolvida aprecia o belo, é um artista.  A arte foi um dos recursos que utilizou para evitar a loucura.

O rapaz em seu desespero tenta fugir e suicidar–se duas vezes durante o filme.

 As roupas, e os manequins nos remetem a Persona e as máscaras. Ele rasga as roupas femininas que o Dr. deixa para ele sobre a cama, e também as de seu armário para fazer suas obras de arte. A própria malha usada por Vicente-Vera é uma segunda pele que deixa seu corpo moldado como se estivesse nu. Importante também o vestido que ele veste no final do filme e quando sai para comprar roupas para sua nova Identidade.

 Vicente-Vera passa de possível algoz para vítima da violência, de estuprador para estuprado de homem para mulher. Em seu desejo de liberdade, mobiliza seus mecanismos de defesa na luta pela sobrevivência e planeja sua vingança invertendo novamente os lados e identificando-se com o algoz.

Ao acordar Vicente-Vera prepara o café para levar para Robert, que ainda dorme, circulando pela casa livremente enquanto Marília parece desconfiada. Ele vai até seu quarto para pegar a bandeja e observa tudo o que escreveu na parede, durante aqueles anos, vê o lençol repleto de sangue, onde Zeca a violentou e foi morto por Robert e parece pensar sobre o sonho que teve; refletindo sobre tudo que lhe aconteceu.

 Robert acorda e questiona se na noite anterior, antes dormir, fizeram uma promessa ou terá sido um sonho. O rapaz responde que não foi um sonho, que ele prometeu que não haveriam mais portas trancadas e que ele seria livre, em troca ele jamais o abandonaria. “Não me desiluda” diz Robert. “É tudo o que tenho Robert, sua promessa e a minha”, responde.

Robert é desmascarado por Fulgêncio que mostra a ele que sabe de seu segredo.

O resto da história conhecemos. Vicente- Vera conquista a confiança de Robert, que infantilmente se deixa enganar, conseguindo fugir após matá-lo e a Marília, indo ao encontro da irmã e a mãe.
 
O conflito de Vicente nos leva a refletir sobre a pluralidade das manifestações da sexualidade e da relação masculino-feminino: heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, transexualidade e travestibilidade.
A mitologia refere-se no Banquete de Platão, ao ser Andrógino, hermafrodita, que estaria na origem dos sexos. A androginia seria a nostalgia desse estado inicial, inscrito no inconsciente coletivo, em que o homem e a mulher, buscariam novamente essa unidade no mundo externo através dos relacionamentos. O retorno a essa inteireza original só é possível psiquicamente através do casamento alquímico interno entre o homem e sua Anima e da mulher e seu Animus.
Na maioria das pessoas a percepção de gênero (masculino e feminino) coincide com a do corpo. Se a psique estiver identificada com a figura sexual inconsciente oposta: anima no caso dos homens e animus no das mulheres, ela terá provavelmente orientação homo, e sentirá atração por pessoas do mesmo sexo. Pode acontecer também que a identidade sexual não coincida com a do corpo e haverá o desejo de mudar de sexo. 
Vicente tinha uma identidade Masculina, coincidente com seu corpo de homem e uma orientação heterossexual e teve arbitrariamente seu sexo físico modificado, passando a ter um corpo feminino. Tamanha violação, o transforma em um homem sem Identidade, sem memórias, e o seu próprio corpo uma prisão. Sua memória psíquica persiste, porém no Corpo Etérico, que é inviolável. Existe pior prisão que aquela sem muros? Continua se sentindo um homem, aprisionado num corpo de mulher. Ter um corpo em desacordo com sua alma. Vicente habita um corpo que não é seu e se sente prisioneiro dele não só fisicamente, mas psicologicamente.
Vicente-Vera é um Transexual. Como se comportará ele daqui para frente? Continuará com Identidade Sexual masculina ou sua psique passará também por transformações e ele mudará de Identidade?

E você? Que relação tem com seu corpo?

“A pele que você habita, diz quem você é ou lhe aprisiona”

Quem é Você?  Qual a sua verdadeira Identidade? Quem Habita a Pele?
Somos um Corpo animado por uma Psique ou Alma (pensamentos e sentimentos), animada por uma Presença ou Espírito, por um nous, por meus sonhos, minhas imagens, pelo Silêncio, animado por um Sopro ou Pneuma, que é a Consciência. Somos a manifestação da pura Consciência, que nos habita: a Pele....