domingo, 15 de maio de 2011


 Cisne Negro


    “Um encontro com a própria Sombra”

 
“A única pessoa que está no seu caminho é você mesma.”  Thomas

“Todo mundo carrega uma sombra, e quanto menos ela está incorporada na vida consciente do indivíduo, mais negra e densa ela é. Se uma inferioridade é consciente, sempre se tem uma oportunidade de corrigi-la. Além do mais, ela está constantemente em contato com outros interesses, de modo que está continuamente sujeita a modificações. Porém, se é reprimida e isolada da CONSCIÊNCIA, jamais é corrigida, e pode irromper subitamente em um momento de inconsciência. De qualquer modo, forma um obstáculo inconsciente, impedindo nossos mais bem-intencionados propósitos.” C.G.Jung 

 “O animal que é no homem a psique instintual, pode tornar-se perigoso, quando não é reconhecido e integrado na vida do indivíduo. A aceitação da alma animal é a condição da unificação do indivíduo e da plenitude do seu desabrochamento.” C.G.Jung

Elenco:

. Nina Sayers: Natalie Portman
. Thomas Leroy: Vincent Cassel 
. Lily: Mila Kunis
. Erica Sayers: Barbara Hershey 
. Beth MacIntyre: Wonona Ryder


Premiações:

Ganhou o OSCAR, o Globo de Ouro, BAFTA, Screen Actors Guild de melhor atriz para Natalie Portmann e ganhou o Independent Spirit Awards como melhor filme.



“Só quero ser Perfeita”   Nina


“Cisne Negro” é uma obra de arte. Reúne beleza em suas cenas elaboradas com primor, competência na atuação de seu elenco e diretor, profundidade ao tratar de temas sobre a natureza da alma humana.

Narra o desenrolar do processo de amadurecimento de uma jovem bailarina, chamada Nina, isto é, a sua Individuação. O termo é usado na Psicologia Junguiana para designar o caminho do desenvolvimento humano, através do autoconhecimento, que se traduz na trajetória do Ego (centro da personalidade consciente) em direção ao Self ou Si-mesmo, (centro mais profundo e diretor de toda a Consciência). 

 O filme é construído a partir das percepções subjetivas de Nina, de sua interioridade. Tudo surge de como ela se vê e vê o mundo, dos seus desejos, medos e mecanismos de defesa. O mundo de Nina mistura realidade e fantasia; nele o consciente e o inconsciente estão tenuamente separados.

 A gravidez indesejada de Nina faz com que sua mãe, Érica, abandone prematuramente o Ballet, traumatizando-a. Amarga e desiludida, sem vida própria, transfere para filha suas frustrações culpando-a inconscientemente por suas dores. Obcecada em realizar seus desejos não realizados através da filha, projeta nela aquilo que não conseguiu ser: uma grande bailarina e a partir daí dedica sua vida integralmente na construção obstinada de sua carreira.

 No nível psicológico temos uma relação mãe-filha do tipo neurótico. Uma mãe doentia e ferida pelos conflitos de sua vida que não pode aceitar integrar e transformar, e uma filha, dependente, e virginal que carrega as frustrações da mãe. Cada uma nutrindo e mantendo a neurose da outra, uma relação simbiótica, um Complexo Materno ainda por resolver.

Tirana e devoradora, Érica, cria Nina com rigoroso padrão de perfeccionismo, superproteção, exigência, repressão e controle, aprisionando-a no rótulo de “doce menina”, como gostava de chamá-la. Essa dinâmica lhe impede de desenvolver o curso libidinal normal de seu crescimento como ser humano e mulher, mantendo-a em um mundo infantil, vivendo como menina num corpo de mulher.

 "Era uma vez uma jovem chamada Nina que é criada em um quarto cor de rosa, envolta em bichos de pelúcia e caixas de música, por uma mãe dominadora que está sempre a espreita, sondando, escutando, controlando, observando. Mais uma bruxa ou madrasta do que uma mãe". Uma presença negra até nas roupas que veste, (ao contrário de Nina que está sempre de branco ou roupas claras) e que nutre um misto sentimento de satisfação, inveja e posse, sentindo-se ameaçada quando seu objeto de prazer e realização quer assumir vida própria. 

 O Filme começa com um Sonho, mensagens do Inconsciente. Nina sonha ser a Rainha dos Cisnes, exatamente quando estava sendo enfeitiçada pelo mago Rothbart, o personagem de sombra do conto, que se apresenta como uma ave negra. Foi um sonho escuro, misterioso, amedrontador, um pressagio do processo de transformação que a bailarina viveria.  Nina acaba realmente sendo a protagonista do espetáculo o Lago dos Cisnes e também sendo constelada pelo arquétipo da Sombra, (enfeitiçada por ele).

 A história “O Lago dos Cisnes”, é um conto francês de autoria de E. T. A. Hoffmann.  É a saga de uma princesa que é enfeitiçada com seu séquito de acompanhantes, por um bruxo, que a transforma em Cisne Branco durante o dia. Só um verdadeiro amor pode trazer a redenção e desfazer o encanto. É aí que um príncipe se apaixona por ela, mas, entretanto quando o amor vai se concretizar, o Cisne Negro (na verdade a filha bruxa do mago, que se faz passar pela princesa) o seduz. Ao perceber a traição e  a impossibilidade de ter sua vida normal de volta, o Cisne Branco resolve se jogar num abismo para a morte, num vôo de libertação. Essa acaba sendo a história do filme, e a de Nina, que vai sendo apresentada simbolicamente.

A trama é um duelo entre a Persona: arquétipo que representa a aparência externa, aceita como correta e adequada (o ideal do Ego) e o arquétipo da Sombra: nosso lado reprimido, negado e escondido.  Nina era a boa moça, filha esforçada, amorosa, quase perfeita, que negava sua sombra, recalcando conteúdos psíquicos ligados aos instintos sexuais, agressividade, e expressão. Essa cisão (comportamento polarizado) estrutura um Ego frágil e facilmente dissociável.

É a clássica metáfora do embate entre o bem e o mal, isto é, o confronto das polaridades opostas que nos habita: Luz e Sombra, simbolizado no filme pela rivalidade entre o Cisne Branco e o Cisne Negro. O desenvolvimento psíquico passa pelo equilíbrio dinâmico dessas polaridades, isto é a busca da Inteireza ou totalidade psíquica, que é a meta do Processo de Individuação (do latim individuus, que significa "indiviso", não fragmentado, ou "inteiro").

Para Jung, a meta da Individuação não é ser perfeito e sim ser inteiro. A inteireza, por definição, inclui um conhecimento de todos os aspectos da nossa personalidade, inclusive aquelas características que preferimos não reivindicar para nós. Jung observou: “A meta não é superar nossa psicologia pessoal, tornar-se perfeito, mas familiarizar-se com ela.”

Aqui poderíamos abrir um parêntese para identificar outras dicotomias do filme: corpo e alma, castidade e sexualidade, sedução e pureza, bem e mal, perfeição e pecado, e do papel que a cultura religiosa cristã, na qual estamos imersos, tem na repressão da Sombra e da enorme influencia que ela exerce no inconsciente coletivo.

O filme trata da batalha quase diária de crescer em contato com as dificuldades da vida, a luta interior pela libertação dos medos. O maior desejo de Nina era o sonho ambicioso de ser a Rainha dos Cisnes, do espetáculo o Lago dos Cisnes, sendo reconhecida como primeira bailarina. Isso corresponde ao imenso medo de se libertar de sua mãe e crescer, pois desejamos o que mais tememos. Para construir uma Identidade própria, Nina precisaria primeiro se diferenciar de sua mãe, rompendo com a simbiose. Teria que superar seus medos, enxergar seus monstros, integrar sua Sombra.

Magérrima, rígida, fechada para vida, com transtornos alimentares (bulemia e anorexia), Nina dedica-se inteiramente a  carreira de bailarina, passando o dia no preparo da forma física e em treinos exaustivos e extenuantes. Sua dedicação e esforço são stressantes e a busca da perfeição, que para ela queria dizer perfeição técnica, uma obsessão. 

 No mesmo dia em que teve o sonho, no caminho para a companhia de Ballet, podemos perceber que ela vê seu reflexo na janela do metrô, de uma forma diferente, como se a projeção de sua sombra fosse outra pessoa. 

Ao chegar ao Estúdio de Ballet, fica sabendo que o diretor Thomas fará uma versão de “O Lago dos Cisnes” e que procura uma bailarina que seja capaz de representar o Cisne Branco e o Cisne Negro e que nessa versão ele almeja uma execução visceral  bem diferente das outras.

 Thomas sabe que Nina seria certa para o papel do Cisne Branco, por ser doce, meiga, ingênua e pura, mas duvida de sua capacidade para fazer o Cisne Negro, pois ela não sabe nada sobre o lado negro, malícia, sensualidade, maldade e sedução. Nina é uma bailarina com muita técnica e disciplina, mas com pouca espontaneidade e sensualidade.

 Depois dos testes, a bailarina vai conversar com o diretor, e esse sempre a provoca, inclusive sexualmente, para que sua aluna desenvolva as características que estão reprimidas, o lado visceral que ele quer apresentar em sua montagem. Nina nessa conversa é beijada “a força” por ele e o morde nos lábios. É essa atitude que lhe garante o papel principal, pois é como se nesse momento Thomas tivesse enxergado em Nina um pouco daquilo que ele procurava.

 A busca pela perfeição é um dos temas centrais do filme e nela estão mergulhados todos os personagens da trama.

 “Cisne Negro” mostra um lado do Ballet que é pouco falado e mencionado: sua sombra. Por trás da beleza, da delicadeza e  leveza dos movimentos, existe uma arte extremamente cruel em sua busca pela perfeição no desempenho e reconhecimento profissional. Isso gera um ambiente de grande disputa, rivalidade e competição entre as bailarinas, o surgimento das “preferidas”,  um jogo sedutor e antiético de Egos inflados.

 Os ensaios começam e Nina é pressionada física, mental e emocionalmente. Todos os personagens vão influenciar a crescente loucura da protagonista em sua busca por perfeição: seu rígido mentor e diretor, a bailarina veterana, Beth que é uma perigosa versão dela própria no futuro e a novata Lily que tem todos os atributos do Cisne Negro e surge como forte concorrente para o papel, personificando seu inimigo interno no presente. Some a tudo isso a mãe opressora e teremos um terreno propício para a dissociação ou loucura.

A relação de Nina com Thomas instiga amor e ódio. Sem figura paterna para fazer o corte da simbiose materna, e, portanto sem modelo masculino, Nina vive a fase Edípica projetando nele seu animus, arquétipo de seu lado masculino inconsciente, fazendo um apaixonamento. Apesar de reconhecer o talento da bailarina, ele sabe de suas limitações e exige superação, pois sua perfeição técnica transparece como frieza e ausência de sentimentos. Para isso a seduz e propõe que se masturbe. 

 Nina luta internamente, pois quer ser uma mulher adulta mais teme a fúria e a presença da mãe caminhando inevitavelmente para a tragédia, surgindo distúrbios da senso percepção, como delírios e alucinações. 

 Observamos nela um comportamento de autoflagelação que é a manifestação de sentimentos de culpa e necessidade de autopunição.  Nina se coça até ferir a pele das costas do seu ombro direito (uma alusão a sua sombra) que vai sendo marcada no local onde cresceriam suas futuras asas. A pele é o nosso órgão de contato com o mundo e expressa nossas angústias e transformações. Ao se ferir, a garota encontra um meio de entrar em contato com seu próprio corpo, pois não consegue fazê-lo de outro modo.

Ela também provoca ferimentos e lacerações nas unhas das mãos e dos pés, (estigmas) sempre com sangramento e visões. O sangue está presente como elemento simbólico durante toda a narrativa, realizando o contato entre a vida e a morte.  Esses comportamentos já eram familiares para sua mãe, que contorna a situação cortando suas unhas e usando maquiagem de camuflagem, tratando Nina como uma criança que fez algo de errado, ao invés de um adulto que necessita de ajuda.

Lily é aquilo que Nina não é: uma bailarina sem técnica, mas excitante e visceral. É a personificação de sua sombra e acaba tendo um papel importantíssimo do ponto de vista psicológico para Nina. Através desse confronto, ela vê seus conteúdos projetados de sombra, o que faz com que ela entre em contato com sua sexualidade, agressividade, instintos primitivos como raiva, ciúme, inveja, tesão e até vontade de matar. Nina vai resgatando o contato com ela mesma, e se despojando de sua Persona de perfeitinha para ser aquilo que realmente é. Começa então a questionar a autoridade da mãe, a transgredir e crescer.

Na busca pela perfeição e na tentativa de provar a Thomas que é capaz de expor seu lado mais selvagem, Nina é conduzida de tal forma pelo papel que interpreta que começa a perder a capacidade de discernir e não consegue perceber os limites entre sonho (fantasia) e realidade. Tragada pela força do inconsciente, ela vai aos poucos se dissociando cada vez mais. Seu destino se sobrepõe ao enredo de “O Lago Dos Cisnes”. Seus aspectos sombrios lhe trazem força sem direcionamento, e seu animus, representado por Thomas, lhe impulsiona para tornar-se inteira.

Nina, precisa deixar escapar o controle, perder-se em seu labirinto de emoções assustadoras para ver-se Negra, como o Cisne que não sabia interpretar, para então tornar-se mulher, com verdade, coragem, marcas. É o encontro e integração com a Sombra. 

 Analisando o desenvolvimento libidinal (da sexualidade) de Nina, podemos dizer que depois de ter vivenciado a fase edípica de identificação com o sexo oposto com Thomas, ele desperta nela o autoerotismo, quando o interesse sexual volta-se para ela mesma, sua sensualidade primitiva. Depois desta fase narcísica, segue-se a fase homossexual que é integradora desse nível básico de desenvolvimento. Devido ao seu desequilíbrio interno, Nina interpreta isso como uma conspiração vinda do mundo externo e não consegue perceber que são projeções do seu mundo interno, que nesse momento não podia realizar a integração.

No filme, aparece a relação homossexual entre Nina e sua rival Lily, seu duplo auto-erótico,  como fantasias de uma cisão, mas que poderia também ser interpretada como devaneios.

 O filme apresenta o universo feminino em suas várias facetas, com a presença de vários arquétipos femininos: a mãe devoradora; a filha Perséfone, jovem e virgem, donzela; Lilith, a mulher sexuada e sedutora. 
Observa-se o trabalho com espelhos e sombras, insistindo na sensação de divisão, de um outro universo como um negativo de um filme. O espelho, aquele que reflete nos mostra quem somos e simboliza a coragem de se arriscar e assumir o outro lado da vida.

 Cisne Negro é um filme escuro, com a predominância de três cores básicas: o preto e o branco, representando as polaridades e o vermelho do sangue, símbolo do sacrifício da bailarina. 

Durante o primeiro ato, Nina erra e cai, sentindo-se envergonhada, humilhada e frustrada. Quando chega ao camarim ela em suas alucinações se confronta com Lilly encarnando o Cisne Negro, uma porção dela mesmo que toma vida. Esse é o ponto culminante do filme. Sentindo-se ameaçada ela avança sobre ela num desejo de morte e destruição. No momento em que pensa matá-la na verdade mata o Cisne Branco, ela própria: O Cisne Negro mata o Cisne Branco, e assume sua personalidade. A Sombra se apodera dela. Novamente a presença dos espelhos com o qual Nina se fere na altura do plexo solar, chacra que comanda as emoções É um momento de perfeita integração entre a Vida e a Morte.

De volta ao palco ela dança magistralmente, vai ser o Cisne Negro. Realidade e loucura se encontram por um breve momento. Ela é ovacionada, está em êxtase, levita... Sua execução é perfeita e ousada. Em seu delírio seu corpo vai se transformando, adquirindo asas no lugar de braços, penas, e finalmente ela é o Cisne Negro. Ao sair do palco beija Thomas, não mais como menina, mas como mulher apaixonada.

 No último ato, o Cisne Branco, como uma alma aprisionada, busca o seu príncipe para libertar-se, mas sua parte obscura, o Cisne Negro, acaba corrompendo o seu próprio salvador e não resta alternativa a não ser encontrar outra via de libertação: a morte. Aqui temos a pulsão de Vida, Eros e da Morte, Tânatos.

Quando o Cisne Branco sobe as escadas para se matar vemos um disco dourado ao fundo  que pode representar o símbolo do Self, arquétipo central da psique ou  Si-mesmo,  expressando o momento da transcendência e inteireza: “Eu senti...”

 A Morte pode ser vista aqui como símbolo de salvação, transformação e redenção.
 
O Cisne é um animal que simboliza a origem da vida e dos seres humanos, representa ora o elemento feminino fecundado ora o elemento masculino fecundador. A imagem do cisne é, portanto hermafrodita e pode ter duas manifestações, uma solar e masculina e outra lunar e feminina. Quando assume as duas facetas, a solar e a lunar, torna-se num ser mágico e misterioso, que representa a fusão das polaridades. 

Na antiga Grécia, o Cisne macho era o acompanhante permanente de Apolo, o deus da beleza, da música e da poesia, cujo carro celeste era puxado por cisnes. No mito de Leda, o cisne tem também uma simbologia masculina já que Zeus se transforma em cisne para perseguir Leda, que lhe foge transformada em ganso, simbolicamente semelhante ao cisne fêmea.

 No Oriente, o cisne é símbolo da música e da poesia, para além de representar a coragem, a nobreza, a prudência e a elegância e beleza. Na Índia, o cisne é montado pelo deus Brama, e simboliza a elevação espiritual. Na tradição celta, os espíritos do outro mundo regressam ao mundo dos vivos sob a forma de cisne. São os cisnes também os responsáveis por trazer as crianças ao mundo em muitas tradições. 


A Individuação é  a busca de ser  "aquilo que se é".
Torne-se quem você é..




Bibliografia:
.Jung, Carl Gustav: O Homem e seus Símbolos, Ed.Nova Fronteira
.Leloup, Jean-Yves: Caminhos da Realização, Ed. Vozes
.Maia, Prof.Herberto Edson Maia: O filme Cisne Negro: Uma Interpretação Psicológica
.Zweig, Connie e Abrams, Jeremiah: Ao Encontro da Sombra, Ed. Cultrix
.Connie Zweig e Steve Wolf: o Jogo das Sombras, Ed.Rocco
.Testa, Ana Luísa: Terapia em dia; O cisne Negro



Márcia Hita: Médica e Psicoterapeuta Junguiana 
                       Membro do Núcleo de Estudos Junguianos da Bahia
                       Membro do CIT: Colégio Internacional dos Terapeutas